Aquela
presença negra e sombria invadia o consultório médico, como se não existisse
por si só. Ninguém levantara os olhos dos seus jornais sanguinolentos para
observar quem adentrava a sala. Com o olhar baixo circulava por entre as
cadeiras sem nada dizer. Ninguém o notava, mas ele via muito mais do que
pessoas naquela sala.
Era temido,
mas passava despercebido. Dono da maior funerária da cidade, herança da
família, toda já morta e enterrada pelas mãos de seu herdeiro, ele desfilava os
aromas da morte por onde passava. Tinha a partida de muitas pessoas na sua mão,
e fazia seu trabalho com ardor, sem pensar que um dia sua vez chegaria. Tanto
mistério se escondia debaixo das faces amarrotadas que, com olheiras coloridas
por cinza, escondiam um coração sofrido.
Sentara-se na
sala de espera e, cruzando as pernas, tirou do bolso o obituário da semana
anterior. Apreciava tanto seu trabalho que começou a olhar foto por foto e
relembrar das lágrimas jorradas pela família em cima dos caixões das vítimas.
Sentia-se pleno quando sabia que sua obrigação havia sido cumprida e, de tantas
despedidas que assistiu, era certo de que a sua nunca chegaria.
Lembrava-se da
jovem moça loira que morrera no acidente de carro. Ela vestia vermelho e tinha um
olhar de gente esperançosa. Lembrava-se também do senhor de cabelos grisalhos
com costeletas que tivera ataque cardíaco, da menina que desapareceu e foi
encontrada morta. Esta, que não teve tempo de dar um último adeus aos pais. Era
apegado a cada uma das histórias que, sem saber exatamente o motivo, mexem com
a vida de quem participou. De repente, foi arrancado de seus pensamentos por um
estrondo de uma porta batendo. Alguém havia entrado na sala.
Quando ele
levantou os olhos, viu-se a frente de uma feição familiar. Assim que voltou seu
olhar para o papel, percebeu que se tratava de um rosto conhecido demais e
recém visto. Nas páginas amassadas do obituário então reconheceu a presença que
ali estava: com cabelos loiros e um longo vestido vermelho, ela acenava para
ele. Ao seu lado, uma menina que chamava incessantemente pelos pais. E ao lado
dela estava um senhor, de cabelos grisalhos e costeletas, que assim que viu o
homem sombrio se levantou e, vindo na sua direção, exclamou sorrindo: nós
estávamos esperando por você!
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