domingo, setembro 07, 2014

Hora Marcada


Aquela presença negra e sombria invadia o consultório médico, como se não existisse por si só. Ninguém levantara os olhos dos seus jornais sanguinolentos para observar quem adentrava a sala. Com o olhar baixo circulava por entre as cadeiras sem nada dizer. Ninguém o notava, mas ele via muito mais do que pessoas naquela sala.

Era temido, mas passava despercebido. Dono da maior funerária da cidade, herança da família, toda já morta e enterrada pelas mãos de seu herdeiro, ele desfilava os aromas da morte por onde passava. Tinha a partida de muitas pessoas na sua mão, e fazia seu trabalho com ardor, sem pensar que um dia sua vez chegaria. Tanto mistério se escondia debaixo das faces amarrotadas que, com olheiras coloridas por cinza, escondiam um coração sofrido.

Sentara-se na sala de espera e, cruzando as pernas, tirou do bolso o obituário da semana anterior. Apreciava tanto seu trabalho que começou a olhar foto por foto e relembrar das lágrimas jorradas pela família em cima dos caixões das vítimas. Sentia-se pleno quando sabia que sua obrigação havia sido cumprida e, de tantas despedidas que assistiu, era certo de que a sua nunca chegaria.

Lembrava-se da jovem moça loira que morrera no acidente de carro. Ela vestia vermelho e tinha um olhar de gente esperançosa. Lembrava-se também do senhor de cabelos grisalhos com costeletas que tivera ataque cardíaco, da menina que desapareceu e foi encontrada morta. Esta, que não teve tempo de dar um último adeus aos pais. Era apegado a cada uma das histórias que, sem saber exatamente o motivo, mexem com a vida de quem participou. De repente, foi arrancado de seus pensamentos por um estrondo de uma porta batendo. Alguém havia entrado na sala.

Quando ele levantou os olhos, viu-se a frente de uma feição familiar. Assim que voltou seu olhar para o papel, percebeu que se tratava de um rosto conhecido demais e recém visto. Nas páginas amassadas do obituário então reconheceu a presença que ali estava: com cabelos loiros e um longo vestido vermelho, ela acenava para ele. Ao seu lado, uma menina que chamava incessantemente pelos pais. E ao lado dela estava um senhor, de cabelos grisalhos e costeletas, que assim que viu o homem sombrio se levantou e, vindo na sua direção, exclamou sorrindo: nós estávamos esperando por você! 

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